sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

VER E SER VISTO NA ROMANCÍSTICA DE CHICO BUARQUE

A Antiguidade introduz o conceito do “fogo do olhar”, destacando o traço ativo da visão e o olho como sua fonte. Essa concepção centrava-se no raio visual, uma projeção luminosa que sai do olho para tocar os objetos, tornando possível, com sua luz, a visibilidade. Pode-se, por exemplo, comparar a idéia antiga do olho humano a uma lanterna na qual brilha uma chama cuja luminosidade é projetada para longe. A idéia de raio visual conecta, assim, luz e visão, permitindo aos antigos supor que, como o olhar iluminava os objetos de sua visibilidade, os corpos celestes também seriam dotados de vista, porque iluminam. Nessa perspectiva, toda fonte luminosa seria capaz de ver.

No mito do fogo do olhar, há ainda a teoria da similitude, na qual somente o semelhante poderia agir sobre o semelhante, ou seja, dois seres possuidores do fogo do olhar, ao mirarem-se, tornar-se-ão visíveis à medida que o brilho de seus olhos entrem em contato um com o outro. No entanto, se um homem olhar para um determinado objeto, este não possuidor do fogo do olhar, os dois também tornar-se-ão visíveis um para o outro, sendo que, agora, a visão será produzida pelo contato do raio visual do humano com os eflúvios emanados dos objetos, formando um corpo único. Na concepção antiga os seres inanimados também se dotam de visão quando olhados, considerando ainda que os dois elementos se vêem e são vistos ao mesmo tempo, confundindo, assim, sujeito e objeto. Mas toda essa concepção antiga do olhar, com seus traços de visibilidade e, segundo a filosofia platônica, de desejo (desejo de saber, desejo do belo) desaparece com o advento da ciência física moderna.

Em 1604, Kepler, a partir do fundamento físico e anatômico da visão, descobre a passividade do olho, que deixa de ser fonte de visão, para simplesmente receber em sua retina um feixe de raios luminosos que atravessam o cristalino, formando a imagem real. Assim, o olho torna-se um órgão passivo, perdendo sua função de ver e o mistério da transformação do visível em visto. A partir daí, a visão passa a depender dos raios de luz, que iluminam os objetos, e de condições geométricas para a formação de uma imagem definida sobre a retina. Assim, a ação não é mais do olho, e sim da luz.

Além de desfazer a idéia de atividade do olho, o pensamento cartesiano também se opõe à teoria da similitude, pois, para a ótica moderna, é necessário haver oposição entre sujeito e objeto e entre ver e ser visto.Juntamente com a ação de visibilidade, o olhar perde a idéia de desejo, porém “a psicanálise introduz na reflexão sobre o olhar humano, uma dimensão que (...), a ótica dos antigos abrigava, mas que a ótica geometral, da qual somos tributários na maior parte de nossa existência e de nosso pensamento, corre o risco de ocultar totalmente”.1

Com o conceito de pulsão escópica, a psicanálise reformulou a teoria do fogo do olhar, restituindo ao olho uma função de atividade, agora não mais como fonte de visão, mas como fonte de libido.Da mesma forma que os antigos acreditavam que o raio visual saía do olho para tocar os objetos de sua visão, constituindo, portanto, um olhar-órgão, a psicanálise também concebe a pulsão, ou seja, o desejo, como a extensão do corpo humano. Assim, psicanaliticamente, a pulsão escópica transforma o olhar na extensão do órgão sexual de quem olha.

“A diferença mais notável entre a vida erótica da Antiguidade e a de nossos dias reside, sem dúvida, no fato de que os antigos davam mais importância à própria pulsão, enquanto nós a damos ao seu objeto. Os antigos glorificavam a pulsão e por ela referenciavam até um objeto inferior, ao passo que nós desprezamos a atividade pulsional em si e encontramos desculpas para ela apenas pelos méritos do objeto”. 2

A sociedade contemporânea é evidentemente dominada pelo olhar, sendo denominada, por isso, de “sociedade escópica”, por Antonio Quinet (2002). Segundo o autor, em entrevista ao Jornal do Brasil (8/6/02), a sociedade atual é “onividente sob variadas formas: desde a proliferação dos programas televisivos de voyeurismo e exibicionismo explícitos até a generalização da vigilância que multiplica as câmeras encontradas em nossos passos todos os dias”. 3

Como escritor pós-modernista, Chico Buarque insere o olhar sob várias perspectivas, apresentando em seus três romances, Estorvo (1991), Benjamim (1995), e Budapeste(2003), a obsessão social contemporânea de ver e ser visto. Encontram-se nesses romances temas como a angústia do anonimato, a imperatividade do exibicionismo, o desejo pelo reconhecimento, o olhar vigilante das câmeras e um reencontro com a teoria do fogo do olhar. É que, na sociedade escópica, ser visto pelo outro é uma implicação fundamental para a própria existência, instaurando-se assim um novo cogito: “sou visto, logo existo”. Pode-se perceber essa necessidade nesses trechos:

1. “Ah, Ariela, adoro nomes bíblicos, minha mulher é Giselle mas eu chamo de Jezabel, você é modelo? Não é porque não quer. Ou será que o Zambraia continua ciumento?” (BENJAMIM, p.86-87).

2. “Irritada consigo, Ariela diz: ‘Eu poderia ser uma modelo’. Era uma frase sem intenção, dita quase para dentro, mas que Benjamim parece tomar para si. Ariela olha os olhos de Benjamim, que piscam e fitam sua boca. E repete: ‘Eu poderia ser uma modelo’ para que ele veja as palavras que talvez não tivesse ouvido bem”. (BENJAMIM, p. 91)

3. “Mesmo quando estava grande evidência, Benjamim não costumava ser abordado na rua. Saudavam-no às vezes com familiaridade equivocada, convencidos de conhecê-lo de vernissages, de alguma ilha, quem sabe do Jockey Club, de convenções ou de um transatlântico. Mas as pessoas mais sérias sem dúvida desconfiavam de um cidadão assim onipresente, que ostentava saúde, fortuna, simpatia, e não tinha nome. O próprio Benjamim sentia-se ludibriado por aquela glória crescente, que tornava a cada dia mais profundo o seu anonimato. Ginasianas cochichavam quando o viam passar, chegavam a corar, ensaiavam uma perseguição, e na primeira esquina perdiam o ânimo; não iriam chamar uma celebridade com um ‘psiu’, um ‘oi’, um ‘ei’, nem veriam substância no seu autógrafo. Agora que entrou na moda fotografar-se ao lado de artistas, Benjamim perdeu em fotogenia e ninguém mais o persegue. Mas caso as adolescentes de boné tenham trazido uma polaróide, não lhes fará objeção”. (BENJAMIM p.39-40).

4. “Meu nome não aparecia, lógico, eu desde sempre estive destinado à sombra, mas que palavras minhas fossem atribuídas a nomes mais e mais ilustres era estimulante, era como progredir de sombra”.(BUDAPESTE, p. 16)

5. “Meu desejo era o de que a Vanda o lesse. Então comprava vários exemplares do jornal e os deixava com meu artigo à mostra no caminho dela, na mesa de jantar, em cima do telefone, no berço do menino, junto ao espelho do banheiro. Ver a Vanda correr os olhos sobre as minhas letras, esboçar um sorriso, apreciar um texto meu sem saber que o era seria como vê-la se despir sem saber que eu a estava olhando”.(BUDAPESTE, p. 103)

6. “Aquilo começava a lembrar uma convenção de alcoólatras anônimos que padecessem não de alcoolismo, mas do anonimato. Veteranos autores, ostentando o nome completo no crachá, disputavam o microfone para um festival de vanglorias”.(BUDAPESTE, p. 20)
No primeiro e segundo exemplos, uma frase dita por G. Gâmbolo traz à tona o desejo de Ariela em ser vista, olhada, apreciada, uma vez que a profissão de modelo faz do homem um objeto do olhar. Benjamim, ex-modelo fotográfico, conhece o prazer de ser reconhecido por pessoas que ele próprio não conhece, mas sua existência é limitada pela falta de um nome famoso e uma aparição sistemática. Já José Costa, no quarto, quinto e sexto exemplos, traduz a angústia de um ghost-writer entre o dever do sigilo e o desejo da exibição.
Esses três personagens representam, na atual sociedade, a aspiração à fama, o desejo de ser uma celebridade,alvos esses possíveis para qualquer um, numa sociedade escópica, desde que captado pelos radares da mídia.

7. “A casa da minha irmã é uma pirâmide de vidro, sem o vértice”.(ESTORVO, p.14)

8. “Minha irmã estará debaixo do chuveiro, num banheiro que eu não conhecia, e que seria uma pirâmide forrada de espelhos. Numa só mirada seria possível ver minha irmã de todos os ângulos. E a visão seria tão instantânea que todas as imagens dela se fundiriam na retina de quem visse. E ver tanto dela ao mesmo tempo, de frente e de dorso e de lado e do alto e de baixo numa imagem só, talvez fosse como nada ver, mas seria tê-la visto absoluta”. (ESTORVO, p. 83).

A transparência da casa de vidro da irmã, em Estorvo, remete a uma construção do final do século XVIII, o Panóptico. Usado para a vigilância de prisioneiros, era composto por uma torre central e um edifício que a circundava, com os prisioneiros ficando em celas transparentes, banhadas pela luz. Mas a transparência da casa do romance traduz muito mais a intenção do desejo de exibir-se que a de disciplinar-se, o que pode ser comprovado por esse banheiro, um lugar íntimo, totalmente especular, num exagero imagético que pode causar, paradoxalmente, a sensação de não se ver nada, como tentar enxergar algo debaixo de um claríssimo sol de meio-dia.

A vida, na pós-modernidade, se transformou em um espetáculo e tudo o que nela há, como glórias, horrores, alegrias e tragédias são entretenimentos que mantêm o homem em cena, como figurante ou protagonista, para o deleite do público. Ademais a descoberta da física ótica e o desenvolvimento da ciência e da tecnologia propiciaram a fabricação de todos os aparelhos captadores e reprodutores de visões, de modo que televisão, câmeras filmadoras, máquinas fotográficas e outros aparelhos oculares permitem (ou ordenam) que o homem veja, mas que, principalmente, seja visto.

9. “Diz ‘não tem televisão aí?’ e diz ‘ninguém vai me entrevistar?’. Um rapaz que se apresenta como repórter do Diário Vigilante pergunta o que fazia o suspeito no local do crime. Ela diz ‘que suspeito o quê’ e ‘que local do crime o quê’, e diz ‘meu filho veio me ver, foi detido entrando no prédio, se fosse suspeito estaria fugindo’, e diz ‘onde é que já se viu suspeito fugir para dentro?’.
A índia responde à Rádio Primazia que prenderam o filho porque ele estava sem documento. Diz ‘meu filho estava voltando da praia, não é crime ir na praia, ninguém vai na praia com carteira de trabalho metida no calção’.
Aproxima-se o repórter da TV Promontório dizendo ‘ouvimos também a mãe do principal suspeito’. Aí a índia perde a razão, agarra as lapelas do repórter e desata a chorar no microfone e berrar ‘ele não é criminoso!, meu filho é um moço decente!’ mas o cameraman, que está trepado no capô da caminhonete, grita ‘não valeu, não gravou nada, troca a bateria!’. A índia pára de chorar, olha para o setor da imprensa e diz ‘imagine meu filho, que até é doente, estrangulando um professor de ginástica’. Volta o repórter da TV Promontório e pede-lhe para repetir a fala anterior, que ele achou bem forte. Eu fiquei com vontade que ela não repetisse aquilo, mas agora não adianta, ela já está chorando mais que antes e berrando ‘ele não é criminoso!, meu filho é um moço decente!, ele é sério e trabalhador!”. (ESTORVO, p.44-45)

10. “Absorto no centro da festa, tardei a me lembrar da Vanda, que eu abandonara na porta. E lá permanecia ela, entretida numa roda de senhoras que provavelmente a conheciam da televisão”.(BUDAPESTE p.35)

11. “Mas quando o assunto era do seu domínio, falava grosso. Assim, exigiu a reimpressão de dez mil cartazes em cores, em papel brilhante, apresentando a nova grafia de seu nome, resultado de consultas a uma numeróloga”. (BENJAMIM, p.72-73)

12. “G. Gãmbolo estende uma cartolina: num horizonte azul-celeste remontam as letras de ALYANDRO, como rochedos amarelos com destaque para o ípsilon, em corpo maior e alaranjado; abaixo do logotipo, em letra de imprensa, o slogan ‘O companheiro xifópago do cidadão’. Estimulado por Alyandro, G. Gâmbolo sobrepõe na mesa sucessivos layouts, e ainda saca da maleta um punhado de adesivos, e camisetas, e buttons e chaveiros em forma de ípsilon”. (BENJAMIM, p.89-90)

A importância de ser visto na televisão é apresentada no exemplo nove, quando uma personagem é entrevistada por um jornal escrito, uma rádio e uma TV. Para as duas primeiras mídias, ela apresenta a sua denúncia de forma incisiva e controlada, mas, com a presença da TV, muda o comportamento, transformando-se na protagonista de um espetáculo. Já no décimo exemplo, Vanda, âncora de um telejornal, torna-se uma celebridade no meio das pessoas anônimas e, como tal, é admirada. Na verdade, aqueles mirados pelas lentes podem ser esquecidos com facilidade, pois o mercado da imagem sobrevive de novidades, tanto que Alyandro, que nele deseja continuar, usa artifícios da publicidade para não ser ouvidado. Mais que um nome, ele procura ser uma marca.

Com a dominação da sociedade escópica, Chico Buarque sensibiliza o leitor ao mostrar o ser/não ser visto social e/ou afetivamente. Nesse sentido, recobrando a questão da visibilidade como sinal de existência, John Adams falou da invisibilidade do pobre. “A consciência do pobre é clara; e, no entanto, ele tem vergonha... Ele se sente fora do alcance do olhar do outro, tateando no escuro. A humanidade não lhe presta a menor atenção. Vagueia sem ser visto”.4

13. “Sentou-se no primeiro banco e virou o rosto quando o ônibus encheu-se de operários e empregadas domésticas”. (BENJAMIM, p.99)

14. “A imobiliária Cantagalo fica no segundo andar de um edifício de escritórios a uma quadra da praia, e Ariela gosta de ver os banhistas ocupando a calçada nas manhãs de sol”. (BENJAMIM, p.33)

15. “De terno escuro e gravata me sentia em condições de negociar com qualquer um de igual para igual”. (BUDAPESTE, p.162)

O homem atual olha somente para o que inveja. Por isso, sendo os pobres desprovidos de qualquer mérito ou algo que inspire cobiça, não são atraentes para o olhar. Assim, Ariela vira o rosto no ônibus, mas gruda na janela da imobiliária para ver as pessoas na praia. Aliás, no décimo quinto trecho é interessante observar essa necessidade atual de vestir-se bem para ser tratado com atenção e respeito.

O anonimato afetivo é abordado principalmente em Estorvo, no qual o protagonista busca compreensão e ajuda em frouxos laços familiares.

16. “Não localizo o vigia que pede para eu me identificar. É mais de um vigia, são várias vozes que repetem meu nome como um eco na guarita. A resposta também chega em série, e tenho que ouvir ‘não consta da lista’, ‘não consta da lista’, ‘não consta da lista’”. (ESTORVO, p. 53).

17. “Eu repito ‘mamãe’, mas também não tenho muito assunto, e o copeiro amassa o guardanapo que eu deixara intato à minha frente, em forma de canoa. Mamãe não deve ter entendido que era eu, e pouco depois cai a linha. O copeiro passa um tipo de espátula na toalha azul-celeste, catando as migalhas de cream cracker, enquanto eu invento umas palavras no bocal”. (ESTORVO, p. 20).

18. “Ela diz ‘que é que você quer?’ com aquele mesmo tom do telefonema. Como segura um menu, não sei se escolho o lanche ou se começo a contar o meu problema. Minha ex-mulher não olha para mim nem para o menu; olha fixo para lugar nenhum, como quem fala ao telefone. E repete ‘que é que você quer?’, com a prosódia exacerbada de uma ligação ruim. Digo que estou metido numa encrenca séria, e ela diz ‘sei’. Digo que tem gente me seguindo, e ela diz ‘sim’. Digo que podem me matar, e consigo despertá-la. Mas em vez de apreensão ou pânico, ela faz cara de desgosto, como se morrer fosse sujo. E diz ‘você desceu mais baixo do que eu pensava’”. (ESTORVO, p. 37).

Esses trechos mostram a solidão desse personagem diante de sua família e da ex-esposa, que dizia que o amava mais que tudo, implicando uma invisibilidade que acarreta a inexistência de afeto do outro pelo protagonista. Outra distorção dessa sociedade escópica evidente na romancística de Chico Buarque se dá pela própria existência de objetos captadores e reprodutores da visão. Esses aparelhos, que em princípio aumentam a capacidade de visão do homem, são muitas vezes abordados na literatura psicanalítica como causadores de distorção da realidade.

19. “Se uma câmera focalizasse Benjamim na hora do almoço, captaria um homem longilíneo, um pouco curvado, com vestígios de atletismo, de cabelos brancos mas bastos, prejudicado por uma barba de sete dias, camisa para fora da calça surrada aparentando desleixo e não penúria, estacionado em frente ao Bar-Restaurante Vasconcelos, tremulando os joelhos como se esperasse alguém”. (BENJAMIM, p.10.)

20. “Para mim é muito cedo, fui deitar dia claro, não consigo definir aquele sujeito através do olho mágico. Estou zonzo, não entendo o sujeito ali parado de terno e gravata, seu rosto intumescido pela lente”. (ESTORVO, p.11)

21. “Cheguei a ver minha cara na lente, os olhos saltados, a boca aberta, a fisionomia que tenho em todas as minhas fotos, fotos de passaporte”. (BUDAPESTE, p.107)

22. “Meio vesgo e de boca torta fiquei congelado, porque Kriska deu uma pausa no vídeo para acudir a criança, que desatara a chorar. Quando não estava amamentando ela gostava de mostrar suas filmagens, as imagens vacilantes, o zoom irrequieto; tinha a minha cena no aeroporto, tinha a criança no berçário, o parto era para eu ter filmado, mas na hora me senti mal e saí da sala”. (BUDAPESTE, p. 168)

Certos sentimentos e defeitos não são visíveis a olho nu, mas, fotografados ou filmados, são capazes de deformar. As máquinas fotográficas, por exemplo, podem eternizar uma expressão facial desagradável e as filmadoras, com suas imagens em câmera lenta, zoom e pause, podem colocar o ser filmado em situação cômica. O contrário também pode acontecer com as chamadas correções, que embelezam algo não tão belo. Já o olho mágico, assim como o binóculo, o telescópio e o zoom das câmeras transmitem uma imagem aumentada a tal ponto que deformam o ser observado.

Chico Buarque, ao perfazer um percurso completo sobre o objeto olhar, insere o homem antigo em sua obra e o trás para a pós-modernidade pela reinvenção do mito do fogo do olhar.

23. “Pela ótica da Pedra, o aspecto do Benjamim que veio morar no prédio em frente, que toda manhã abria as três janelas, fazia flexões nos parapeitos, estufava o tórax e dizia ‘bom dia, Pedra’, seria o de um homem trinta anos mais velho que este do rosto escalavrado, que em silêncio a contempla”. (BENJAMIM, p. 57)

24. “Minha irmã andando realiza um movimento claro e completo. Parece que o corpo não realiza nada o corpo deixa de existir, e pôr baixo do peignoir de há apenas movimento. Um movimento que realiza as formas de um corpo, pôr baixo do peignoir de seda. Eu me pergunto, quando ela sobe a escada, se não é um corpo assim dissimulado que as mãos tem maior desejo de tocar, não para encontrar a carne, mas sonhando apalpar o próprio movimento”. (ESTORVO, p. 19)

Eis, primeiro, a presença do homem clássico dentro do pós-moderno. Benjamim revive o gozo da contemplação, a plenitude do ato de ver, com seu olhar respondido pela pedra, que não só o vê, mas o analisa. É a presença da Antigüidade, a mistura entre sujeito e objeto, o fogo dos olhares.

No trecho seguinte, o mito do fogo do olhar aparece sob a revisão da psicanálise. É que o raio visual é trocado pela visão libidinal, pois o olhar do personagem para a irmã é carregado de pulsão sexual e se essa pulsão, assim como o raio visual, toca o objeto olhado como extensão do corpo de quem olha e essa extensão é o próprio órgão sexual do personagem, está, pelo menos psicanaliticamente, concretizado o ato sexual incestuoso.



1 Max MILNER. On est prié de fermer les yeux, 1991, apud Antonio QUINET, Um olhar a mais, p.9
2 Sigmund FREUD. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, p.150, apud Antonio QUINET, Um olhar a mais, p.80
3 http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos/asp12062002991.htm.
3 http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos/asp12062002991.htm.
4 Hannah ARENDT, Essaí sur la revolucion, p.97, apud Antonio QUINET, Um olhar a mais, p.280


Referências bibliográficas

BUARQUE, Chico. Budapeste. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

________________. Estorvo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

_________________. Benjamim. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

QUINET, Antonio. Um olhar a mais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.

http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos/> Jornal do Brasil (8/6/02). Acesso em 9 jul 2004.

SAMPAIO, Airton. Anotações de aulas. Teresina: UFPI, 2004.

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